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O trust da Flórida e a proteção contra credores

J. Rubens Scharlack | Scharlack


No primeiro artigo desta série, eu brevemente falei sobre a utilidade do trust para proteger o patrimônio familiar contra credores ou contra a prodigalidade ou as dívidas de um beneficiário. No segundo, eu mencionei a cláusula de distribuição discricionária e a cláusula spendthrift. Neste artigo, eu trato melhor deste tema.


Já expliquei que o trustee tem a titularidade formal (legal title) dos bens e direitos que compõem o trust, mas que tal titularidade vem acompanhada do dever de administrar esses bens e direitos em prol do beneficiário do trust. O beneficiário, assim, tem um interesse em equidade (equitable interest) nos bens e direitos que compõem o trust. Geralmente, o beneficiário pode ceder ou transferir esse interesse, como qualquer outro bem ou direito seu. Da mesma forma, esse interesse pode usualmente ser arrestado ou penhorado por credores do beneficiário.


É natural, portanto, que o criador (settlor) de um trust pergunte: como posso fazer para que os bens que eu deixar para meu beneficiário não venham parar nas mãos de outra pessoa? Sabendo, por exemplo, que meu beneficiário tem queda por jogos de azar ou não se importe em contrair dívidas, qual é a minha segurança de que o patrimônio que eu deixar para sustentar esse beneficiário não se esvaia em suas más decisões ou dívidas?


A lei da Flórida traz dois mecanismos que, apesar de serem imperfeitos por admitirem exceções, ajudam a proteger o intento do criador do trust: a cláusula de discricionaridade e a cláusula spendthrift. Um trust que contenha cláusula de discricionaridade é um trust discricionário (discretionary trust). Da mesma forma, um trust com a cláusula spendthrift é um spendthrift trust.


Um spendthrift trust tem o propósito de prover fundos para a manutenção do beneficiário e ao mesmo tempo proteger esses fundos contra a improvidência ou incapacidade do próprio beneficiário. A cláusula spendthriftrestringe a alienação, tanto voluntária (venda, troca, doação, dação em pagamento etc.) quanto involuntária (penhora, arresto etc.), do interesse do beneficiário no trust[2]. Quando um trust contém uma cláusula spendthrift válida, o beneficiário não pode transferir o seu interesse a terceiros e um credor ou cessionário não pode alcançar o interesse ou uma distribuição do trust até que o beneficiário tenha efetivamente recebido o bem ou direito distribuído. Na Flórida, entretanto, a cláusula spendthrift não é oponível ao filho, cônjuge ou ex-cônjuge do beneficiário que tenha uma ordem judicial de pensão alimentícia, a um credor que tenha prestado serviços para a proteção do interesse do beneficiário no trust e tenha ordem judicial favorável, e a um credor que seja um estado ou os Estados Unidos (o que engloba débitos tributários do beneficiário), nos termos da lei[3]. Finalmente, a cláusula spendthrift geralmente não produz efeitos em relação aos bens de um trust criado para benefício do próprio settlor e também não evita que o credor alcance distribuições mandatórias (i.e., distribuições que o trustee está obrigado a fazer) que o trustee deixe de fazer dentro de um tempo razoável.



Já um trust discricionário dá ao trustee o poder de decidir (i.e., a discricionaridade) sobre se uma distribuição será feita a um beneficiário. Esse poder discricionário pode ou não ter parâmetros discerníveis, que, de acordo com a lei floridiana e a lei tributária federal, dizem respeito à saúde, educação, manutenção ou suporte do beneficiário. Quando o documento do trust concede ao trustee completa discrição sobre distribuições, tanto um credor quanto o próprio beneficiário só pode alcançar as distribuições que o trustee resolver fazer. Nem o credor e nem o beneficiário podem exigir ou forçar uma distribuição.


Tanto no spendthrift trust quando no trust discricionário, o credor geralmente só alcança os bens do trust após sua distribuição ao beneficiário. O trust discricionário, no entanto, distingue-se do spendthrift trust porque, no primeiro, o que impede a transferência do interesse do beneficiário é a própria natureza desse interesse (posto que sujeito à discricionaridade do trustee), enquanto, no segundo, é uma provisão impedindo sua alienação[8]. Além disso, diferentemente do que faz em relação ao spendthrift trust, a lei floridiana não arrola credores em relação a quem a cláusula de discricionaridade não produza efeitos (credores excepcionais). Contudo, uma vez que o trustee tenha decidido distribuir valores ao beneficiário, o credor deste pode arrestar ou penhorar essa distribuição, inclusive de forma continuada.


A limitação (legislativa ou jurisprudencial) dessas cláusulas deve-se ao intento da Flórida proteger não só a vontade original do settlor, mas também os direitos (alguns básicos, como a pensão alimentícia) de credores excepcionais do beneficiário. Ao limitar a proteção da vontade do settlor ao direito dos credores excepcionais, a lei floridiana atribui razoabilidade às disposições do trust e lhes assegura cogência e observância, atributos valiosos para a manutenção de seus efeitos ao longo do tempo.


Portanto, as cláusulas de discricionaridade e spendthrift são mecanismos interessantes e complementares, com atributos e efeitos que devem ser manejados e sopesados com cuidado durante o planejamento sucessório.



 

J. Rubens Scharlack


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